Antes que pense o leitor estar diante de linhas que falam ao coração, se faz necessário colocar as questões nos seus lugares.
A primeira vista, a expressão “Homem Cordial” de Sérgio Buarque de Holanda pode sugerir um conceito empírico, baseado na cordialidade como ethos, uma espécie de bondade e gentileza inerentes, o que ressoa no discurso de que o povo brasileiro é feliz por natureza. Não. Mas não é disso que trata o historiador.
A expressão é um ícone antropológico do como foram erigidas as instituições sociais e as relações de poder delas advindas, desde as brumas de nossa história. O homem cordial é um arquétipo. É aquele que age movido pela emoção em lugar da razão. Uma consequência direta dessa característica está na incapacidade de se distinguir o público do privado e o palco dessa confuso modus operandi é a política. Desse modo, afirma Buarque de Holanda que o brasileiro teria uma herança de longa duração que o impulsiona à informalidade nas relações, aproveitando-se do fato de que nossas instituições sociais foram historicamente constituídas com o cimento da coerção, com a argamassa do autoritarismo, em que o diálogo entre o poder constituído e o povo não passa de mera peça de ficção.
A informalidade é o cerne da indistinção entre o público e o privado. E ela tem nuances muito curiosas.
Primeiramente, permite que se decidam questões estratégicas e até mesmo vitais para o desenvolvimento da sociedade, o que se traduz também pela ocupação de cargos e funções, através de processos irracionais em que pesa muito mais o argumento do particular, o arranjo e acomodação de interesses pessoais, que longe, muito longe passam pelas reais necessidades e expectativas do povo. O preço a pagar é o retrocesso, letargia, empanamento da máquina política, que pode se tornar um paciente terminal, na tentativa de sugar um ar novo em pulmões que já não podem sorvê-lo. Os pulmões políticos devem ser oxigenados se desejamos vê-los limpos, saudáveis e capazes de dar o ar ao sangue dos que acreditam poder fazer ao menos a diferença. Ou podemos irrigar e aninhar calorosamente o câncer, a espera que ele consuma silenciosamente a saúde e as esperanças. E é possível, desde que o câncer seja amigo, que se instale ao menos na mama, pois é a forma mais bem acabada e aconchegante de um peito.
A informalidade precisa passar necessariamente pela “amizade”, seja lá o que isso signifique. Desde o Brasil-Colônia, os mercadores estrangeiros já sabiam que era impossível fazer um bom negócio sem antes travar uma boa amizade com um brasileiro. Ao conquistar uma relação de benefício mútuo, se ganhava a benesse do afastamento da lei e da razão, como gesto de boa-vontade e confiança, oferecendo ao indivíduo os favores que desejar, como e na hora que assim quiser.
Hoje não é diferente. E não importa que, para isso, se tenha que passar por cima de tudo, da lei ou das pessoas, pois os outros não estão em questão. São objetos de uso e não de valor.
Para finalizar, vale trazer para este breve diálogo o professor Roberto Damatta, que identifica que quanto maior a autoridade, maior a tendência de fazer uso das relações informais. E adverte o antropólogo que reclamar além de não adiantar é também perigoso nesse jogo, pois quando a autoridade é perturbada, usará da força pessoal ou dos seus agentes imediatos, primeiro para dissuadir o reclamante e, caso não obtenha sucesso, aplicar-lhe uma sanção. São essas as regras do jogo. Quem vence, debocha com o sorriso de quem nem força precisou fazer. Já para quem perde, só resta, mesmo que entre os dentes, agradecer...cordialmente
* Professor Universitário e Coordenador do Projeto Cidade Viva
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