*Por Paulo Cotias
As relações que se estabelecem entre as pessoas são marcadas também pelo aspecto liquido. Essa afirmação é decorrente do pensamento de Bauman, sociólogo que se debruça sobre o tempo pós-moderno, a tentar decifrar seus rastros. Mas não temos linhas suficientes para expor todo o pensamento, restando apenas o tema inicial que propomos. A liquidez das relações tem o individualismo como pressuposto mais fundamental. Isso significa por as instituições e as pessoas como instrumentos de uso pessoal, tal qual uma escova de dentes. Ao sentirmos qualquer desgaste das cerdas, a descartamos e adquirimos uma nova. É a produção de um efeito catastrófico que o autor denomina “lixo humano”.
Claro que orientamos nossas relações e escolhas com base em certos critérios e perspectivas pessoais. O que destoa do aceitável é a intensidade como escolhemos construir essas relações com pessoas e instituições além do pragmático, fixando apenas o valor mais imediato possível de uso. Sob esse ângulo, causa estranheza que referentes outrora tidos como básicos como o respeito aos compromissos assumidos, a palavra empenhada, ou mesmo a amizade, são agora volúveis como um curso d'água. Ou seja, os compromissos tem a duração exata do tempo de uso. Tudo vai depender de quem usa quem e, no ritmo impresso, quem esgota o outro primeiro.
Esse viés explica um pouco o porque de tantas pessoas e instituições por elas colonizadas cairem no mais profundo descrédito. Tomemos os partidos políticos como exemplo. Em seu nascedouro, a instituição partidária é chamada não só a defender como a entrar de cabeça nas lides sociais, em defesa de certos segmentos representativos, seja o proletariado ou o patronato, entre outros. Hoje, não passam de instrumento para beneficiar a poucos, muito poucos, que transformaram a beleza da militância na face horrenda do carreirismo, da subserviência dos favores, da luta meramente pessoal sob a bandeira enganosa da coletividade. O ícone dessa perspectiva é a confusão entre indivíduo e instituição. A personalização gera um processo corrosivo nos alicerces institucionais, ao ponto do irreversível. Geralmente quem tem esse costume acredita ser uma espécie de reserva moral, ou seja, nada e ninguém “presta” a não ser ele. Ou ainda, retorce a história como um pano de chão, de modo a levar a crer que consigo veio o marco zero de uma nova era.
E para que tudo isso seja levado a cabo, é preciso uma boa quantidade de pessoas descartáveis. Elas não o são pela ausência de qualidade, ao contrário ! São tão excelentes enquanto necessárias a certos propósitos. Especialmente para emprestar predicados que o usuários não possuem. Nesse jogo absurdo, lembremos de Sennet, que tão bem define o “tempo flexível” que nos impõe seus ditames. Ao sermos usados, temos ainda que nos submeter, como vimos, ao tempo de uso que, muitas vezes, são torneados aos caprichos da hora que for.
O resultado disso tudo leva ao massacre dos usados, à produção de mais e mais lixo humano a ser varrido para debaixo do tapete social ou ser reciclado para um novo uso, quando muito. É um fenômeno muito complexo, não mais compreensível em sua totalidade pelas relações sociais clássicas, tão cara às análise marxológicas.
O ingrediente que não pode deixar de faltar nesse denso caldo, é o da mídia. Também ela se torna valor de uso, construindo a opinião conforme as pratas que lhe cabem no bolso. Quantos não arrotam suas qualidades infinitas pagas a bom preço ? Quantos não constroem a perfeição dos atos pelos fatos bem pesados e bem pagos ? Quantos não assanham a arrogância de controlar a dinheiro o que será escrito ou falado sobre seu caráter ? Quantos não apagam da história a justiça, deletam os laços fraternos por meio da infâmia, empenham a memória em nome do financeiro ? Quantos não usam a mídia para ameaçar o outro e ocultar sua abismal mediocridade ? São questões postas para uma longa reflexão.
É difícil sobreviver na liquidez dos tempos. É ilusória a estabilidade em bases movediças. Talvez seja por isso que tantos se agarram aos milagreiros de todas as matizes...mesmo que lhes seja oferecida a oportunidade de desfrutar um pouco de graça, com o pouco que lhes resta a dar.
* Professor Universitário e Coordenador do Projeto Cidade Viva
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